Quando saiu de casa tudo ainda estava normal. Desceu pelo elevador assobiando uma antiga canção militar e seguiu pelos corredores do edifício até a portaria.
Cumprimentou o porteiro e saiu.
Na rua o dia era frio e nublado e chovia vagarosamente.
Ele deveria percorrer todo o trajeto até o mercado público, descendo a escadaria e depois a rua até quase o porto. Depois viraria a direita na praça do mercado e andaria mais 500 metros até o local onde parava seu ônibus todo dia pela manhã. Ao todo teria que percorrer aproximadamente 2 Km da frente do prédio até o ponto.
Parou sentindo o vento frio nos cabelos e olhou para o relógio do telefone celular. Eram 10:26 da manhã. Ele teria aulas de música as 11 horas e o ônibus que chegava no prédio de seu professor saia do ponto exatamente as 10:30. Portanto ele tinha menos de quatro minutos para percorrer aqueles 2 quilômetros em meio a multidão que caminhava desordenadamente parando para olhar vitrines e carregando sacolas e bolsas em uma profusão que desafiava a passagem de qualquer um que se aventurasse contra eles. E dali de cima parecia que todos vinham andando em sentido contrário. Olhou mais uma vez para o relógio:
10:27
O tempo conspirava contra ele. Um velho de 1000 anos caminhando quando precisamos que ele corra, mas um monstro velocista quando nos restam minutos.
Pensou em desistir. Mas quando já se preparava para voltar para casa e esperar até a tarde para o compromisso seguinte, o vento frio o atingiu no rosto. E além do rosto atingiu alguma parte do peito, como se ele houvesse tomado três copos de água quase congelada. Ofegou, virou e desceu as escadas caminhando decidido enquanto o vento rodopiava a sua volta como se fossem cachorros correndo em roda das pernas do dono...sem rumo
Brincando....assassinavam o tempo brincando
Então, como cães de treno que tomam rumo na neve quando ouvem o estalar do chicote, se puseram a correr na mesma direção...os redemoinhos se desfizeram em algo áspero e passavam por ele, empurrando e guiando seus passos. Antes que chegasse ao fim da escada notou uma leveza no corpo como se o próprio vento tivesse se tornado sólido e passasse através dele. Desviou da primeira pessoa, da segunda e quando o choque com a sacola de uma mulher que caminhava em sentido oposto ao seu pareceu inevitável
ele não aconteceu
De alguma forma ele desviou. Continuou caminhando e a mente foi ficando vazia. As pessoas estavam ali e o tempo para elas passava de uma forma mas para ele era como se estivesse em um caminho com um relógio a parte. Então o estalo imediato.
Ele estava na fenda.
O que era a fenda, porque estava ali, o que significava. Nada disso importava. Tudo foi ficando leve e ele caminhava em meio a multidão sem ser impedido. Quando parecia que ele iria bater, no ultimo momento os corpos se transpassavam. Era real tudo aquilo? Era só uma peça de sua mente para que ele fugisse um pouco da mesmice?
Ele tentava pensar. Ele sempre fora um menino lógico e depois de rapaz a sua mente trabalhava com uma velocidade superior a de todos os que ele conhecia.... em alguns pontos... mas por mais que ele tentasse, a situação estava fora de controle.
Ele se soltou e parou de tentar recuperar o controle...se largou a espera do que viria...deixou que o dominassem...então ele entrou fundo na fenda...sem saber o que ela era e nem porque aquele nome lhe retumbava dentro da mente. Caminhou rua abaixo e sentiu que suas pernas perdiam o controle. Agora ele estava andando sozinho em um corredor que parecia descer por algum espaço entre as pessoas. Lembrou imediatamente de uma rampa de lavar carros pois era como se ele estivesse entrando entre os espaços de concreto aonde o carro sobe com os pneus. Mas em décimos de segundo os nomes varreram a imagem da rampa de lavar carros e td ficou nublado.
E ele descia, descia. Cada vez mais....e tudo foi envolvido por uma névoa molhada.
E quando voltou a si, sentiu que tinha um sorriso bobo nos lábios e que trançava as pernas. Os últimos 500 metros ele havia feito fora da realidade. Estava agora em frente ao mercado
Apagou denovo..
Acordou...
Quase na sua parada.
Então subitamente tudo se desfez e ele estava novamente senhor do corpo e da mente. E sentiu que havia escapado de um destino horrível. Que por uma obra de Deus ou de algo a parte desse mundo estava no controle de novo.
Então correu assustado como se algo viesse atrás dele. Sentiu um medo feroz como se um monstro gigante fosse emergir da calçada sob seus pés e levar sua mente de volta para algum lugar de onde nunca deveria ter saído...deixando o corpo fora de si na frente da praça como se ele houvesse sofrido um ataque ou coisa assim. Correu alucinadamente e alcançou o ônibus depois de perceber que a névoa quase o alcançara de novo. Subiu pagou a passagem e sentou no último banco com a intenção de analisar o que havia acontecido.
Então num último impulso que não era dele
Olhou no relógio a tempo de ver o marcador digital passar de 10:28 para 10:29.
Então sentiu que o mundo girava e achou que ia vomitar ali mesmo. Não podia estar acontecendo. Menos de dois minutos.
MENOS DE DOIS MINUTOS
Era o tempo que ele havia levado para ir de sua casa até a parada.
Estava fora das leis do mundo.
De alguma forma alguma coisa estava errada.
Mas ele esqueceu. O fizeram esquecer
Eles sempre faziam.
Quando o alcançaram eles lavaram sua mente das preocupações
E ele lembrou da névoa branca e fria, lembrou do vento.
Então o ônibus começou a andar e ninguém notou o menino que começava a gargalhar no último banco enquanto parecia se fundir com o ar...ninguém notou quando o ele ficou fosco e transparente e quando uma névoa se dissolveu no fundo do carro...deixando nada mais que um espaço vazio.
E quando o cobrador contou apenas 5 pessoas no ônibus enquanto ele tinha seis bilhetes, achou que havia algo errado. Mas logo uma mulher estava a sua frente reclamando a demora do atendimento e ele esqueceu.
O garoto foi dado como desaparecido naquela noite.
Ninguém lembra de nada do que aconteceu com ele.
Mas eu vi algo.Eu dei o terceiro bilhete ao cobrador. Eu estava lá.
De alguma forma eu sei do que aconteceu e isso me assusta.
Quando descia do ônibus uma névoa girou sobre mim e ao meu redor
O vento soprou frio e mais forte
E eu ouvi uma risada insana de algum lugar muito longe e muito fundo para ser daqui.
Era ele...não era?
Bem... acho que isso não vem ao caso.
Estou sentindo um pouco de frio agora e uma névoa estranha esta entrando pela fresta da janela.
Acho que o relógio do computador quebrou.
Estou um pouco tonto. Mas não acho que seja nada.
Vou pegar um copo d' água e já volto.
Esta mesmo frio aqui.
Talvéz....
Se eu abrir a janela e deixar a neblina entrar junto com o que ela carrega as coisas melhorem...