quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Pelo que realmente importa...

Quando começou o primeiro ano na faculdade e mudou-se para a cidade grande, já havia pesquisado muito mais que qualquer outro garoto sobre as paragens oníricas que alguns dos antigos pensadores e sonhadores falavam. Ainda não estava ciente disso. Tinha na leitura apenas um refúgio para as longas tardes e noites vazias quando só pensava nos ares puros e limpos da fazenda onde crescera. Passava horas e horas pensando nos amigos, nos banhos de rio e nas brincadeiras infantis. Tinha um amigo especial que pouca gente podia gabar-se de ter igual e era feliz onde morava antes. Comparada com a tarde mais monótona no lugar onde ele havia crescido, a tarde mais divertida na cidade grande era apenas leve distração. Ansiava pelos fins de semana e pelas horas de folga quando poderia, com a graça dos Outros Deuses, voltar para sua terra natal e rever tudo que ali, no cenário cinza e negro da cidade, apenas parecia o cenário de um sonho distante.


E quando estava caminhando e sonhando pelas estradas de terra da sua cidade natal, sonhava também, com outras dimensões e lugares distantes e aparentemente fora deste mundo. Tentava se transportar o máximo possível para a casa distante, no cume de uma montanha, e de onde podia observar o mais distante vale, e quase tocar o éter espacial quando a noite reinava isenta de lua. E nas noites de lua cheia, observava simultaneamente um crepúsculo vermelho e sanguinolento além do vale de Umhr, e a lua radiante, branca e cinza, surgindo por detrás das montanhas de Silkar, afastadas e silenciosas, espreitando além do vale do rio Skai.


Podia observar o crepúsculo sem precisar sonhar. Subia quase todas as tardes na mais alta árvore do pequeno bosque que rodeava a fazenda e o crepúsculo trazia lembranças e sonhos de mais longe do que ele ia com sua imaginação. Mas o crepúsculo o fazia chorar, como se em um passado remoto ele houvesse partido de um lugar amado, ou perdido a vida nessa hora tão mística do dia. A lua também existia fora dos sonhos e sob a luz dela ele corria pelos campos abertos, coloridos daquele tom azul que só o pessoal que vive no campo conhece. Vivia cada momento naquela luz azul e fria, mágica, que ilumina os sabás e as festas de Walpurgis e sob a qual uivam os lobisomens e as criaturas perdidas e banidas pela claridade solar. E como elas, ele também corria e uivava, sentindo-se mais forte e mais senhor de si do que em qualquer outra hora do dia e da noite.


E ao voltar pra casa deitava-se em sua cama, macia, aproveitando aquela sensação única e confortante dos lençóis gelados e relaxava o pescoço tenso em um travesseiro de penas que sua avó costurara havia anos. Seu amigo muitas vezes já repousava, embalado pelos braços de Reekham, e sonhava com outras coisas que ele desconhecia. Coisas banais. A maior parte meras recordações e cenas pobres feitas a partir de fragmentos de situações do cotidiano, pensava ele com tristeza, por não poder compartilhar de seus sonhos com a pessoa que mais admirava. Então ele partia para mundos oníricos, onde voava e saboreava momentos de pura fantasia, pairando pelos ares acima de sua casa, ao lado de amigos que ele conhecia apenas dos sonhos e pelos quais ansiava por reencontrar. E na manhã seguinte despertava, em uma paz inimaginável, com o cheiro de vida entrando pela janela e perfumando tudo, e mesmo que lembrasse de poucas coisas da noite passada, ainda assim podia saborear com doçura espaços e lapsos do sonho vivido.


Agora ele estava deixando de sonhar, e justamente no momento em que descobria que podia ir mais longe em seus sonhos do que apenas viagens curtas de uma noite. Lendo contos e relatos de escritores antigos e pessoas iluminadas com o dom de sonhar, ele finalmente achava seu caminho e descobria que com alguma concentração poderia penetrar mais profundamente, descobrindo novas terras e pessoas, e talvez até (desejava arduamente que os Outros Deuses lhe permitíssem!!), pudesse se transportar definitivamente ou por tempo generosamente mais longo, para aqueles espaços além das esferas definidas estupidamente pelos homens de cabeças pobres. Seu corpo ficaria aqui, em coma, dormindo ou até mesmo morto, mas ele iria viver sua existência e ser feliz, talvez voltando para ensinar ao seu amigo como sonhar e seguir ao seu lado.


Eram esses os seus planos até o momento em que os sonhos começaram a abandoná-lo. Ansiava arduamente por retomar os sonhos (mesmo que pequenos e pobres de detalhes...curtos) e precisava fazer isso logo, antes que os ares da cidade acabassem com sua inocência e ele perdesse para sempre a chamada Chave De Prata, que abria os portões para as terras dos sonhos mais profundos. Esperava que o ópio, com seu poder entorpecente pudesse ajudá-lo e tinha esperanças fortes de que se lutasse mais arduamente, poderia retomar o caminho esperado.

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