quinta-feira, 21 de maio de 2015

...

Tudo bem com você?

Ele estava sentado no topo de uma pilha de caixas de papelão, me olhando com aqueles olhos enormes e sonolentos, e me lembro como não me pareceu estranho como alguém jovem e bem vestido como ele estivesse sentado aquela hora da noite em um lugar como aquele. Na verdade, olhando para trás naquela noite de abril de 1995, tudo deveria ter parecido louco, absurdo e impossível, mas não pareceu. Lembro como me surpreendi com o efeito que aqueles olhos causaram em mim e mesmo após quase 20 anos me lembro de de tudo com clareza, menos de como cheguei aquele ponto tão baixo da rua, já quase nas docas, onde eu nunca costumava ir.

Ele usava roupas comuns, do tipo que alguém poderia usar sem problemas na rua, mas que em geral usaríamos para ficar confortável em casa naqueles tempos: Uma calça de abrigo, sapatos, uma camiseta com uma estampa colorida que não me dei ao trabalho de reparar, por baixo de uma blusa fina de lã azul, aberta na frente. Na verdade era quase impossível reparar em alguma outra coisa uma vez que você visse aqueles olhos. A pele era branca, os lábios vermelhos até o ponto de mostrarem uma condição saudável e os cabelos eu não posso dizer. O que aqueles olhos tinham de imutáveis, os cabelos ondulados tinham de indomáveis, apesar de a primeira vista parecerem pretos. 

Ele estava sentado em uma pilha de caixas de papelão que se amontoavam contra as paredes de uma casa, em um canto pouco iluminado da calçada, com o corpo inclinado para trás e as pernas dependuradas. Das pontas das mangas saíam duas mãos brancas que depois dos olhos eram o que mais me chamavam a atenção, ainda que eu jamais tenha descoberto porque. O que ele segurava nas mãos era um livro, e este talvez tenha sido um dos motivos pelos quais eu parei e falei com ele, já que neste dia era a terceira vez que eu tinha cruzado com este livro. A primeira vez tinha sido em um sebo da General Câmara, mais conhecida como Rua da Ladeira, e me impressionei em como o livro me pareceu algo especial, ainda que eu nunca tivesse ouvido falar dele. Puxei o volume da estante pela lombada de pano e o abri aleatoriamente na segunda parte, e depois de ler duas linhas, decidi que aquela não era a hora para aquilo. E não sei, na verdade, se existe hora para ler algo como aquilo. Deixei o livro na estante e resolvi passear pelo sebo, pensando se devia ou não comprar aquela coisa, mas nem bem caminhei até o fim do corredor e tive a sensação de que alguém iria por as mãos nele antes de mim. Na verdade era uma urgência de tê-lo em minhas mãos outra vez. Eu precisava dele, e juro que nas duas horas seguintes olhei lombada por lombada naquelas estantes poeirentas e não encontrei mais aquela lombada amarela, ainda que o lugar estivesse, como sempre, silencioso e vazio. 

Saí para a rua com um peso no coração e caminhei a passos largos para o próximo sebo. Não pedi ajuda aos balconistas pois eu conhecia aquelas estantes e prateleiras como ninguém, mas principalmente porque de repente, sem um motivo que possa explicar, tive medo que eles pudessem esconder ou querer o livro para si, dizendo que era um engano que ele estivesse a venda ou algo assim. Ele obviamente tinha ido parar lá por acidente e eu devia encontrá-lo e comprá-lo sem que ninguém percebesse. Inexplicavelmente, a despeito dessa urgência e ansiedade em colocar as mãos outra vez naquelas páginas eu perdia tempo me deleitando com outras obras, folheando e lendo trechos esparsos, e foi ali que ele me apareceu pela segunda vez. Em um livro de poesias antigo e sem título, abri uma página ao acaso e li as seguintes linhas:

Salvem-no, o que vem com a primavera
Os pés descalços semeando raios
As mãos desnudas, as tormentas
Pisando o barro, semeando flores
Vermelhas rosas nas manhãs cinzentas

Salvem-no, em silêncio, aos gritos
Aquele cujas vestes clamam
A volta do céu rubro de outonos
Ainda que tarde seja e o tempo corra
Poder tem de reverter os anos

Das terras secas se colheram frutos
Dos verdes brotos se espalhou o fim
Salvem-no, o senhor do manto
longo em farrapos como sombras
que trazem luz, ou um amargo pranto

Salvem-no, ainda que nunca
entendam como pode alguém
trazer a terra semelhantes dores
que vertem sempre de um mesmo solo
onde vicejam ternos os amores

Sei que não existia ali nada que remetesse diretamente á outra obra mas nos versos estavam obviamente implícitos sentidos ocultos que não tinham outra fonte senão aquela. Assim eu fiquei. o dia todo de beco em beco, vagando por antiquários e sebos, e a noite me encontrou vagando de mãos vazias e olhar perdido, até que numa reentrância cheia de caixas, eu vi o menino dos olhos mágicos segurando aquele livro aberto. 

“Tudo bem com você?”
“Senta aqui” foi a resposta dele, e não me lembro do som da voz dele.

E eu sentei e lemos juntos aquele livro, do começo ao fim. E suspiramos, prendemos o fôlego, e quando acabamos ele me deu a mão e saímos caminhando pela rua. E lembro como os cabelos dele balançavam ao vento, mesmo quando não parecia ter vento, e brincavam e mudavam de cor. E os olhos eram os mesmos desde mil anos atrás. E lembro como ele parecia diferente a cada vez que eu olhava em seu rosto de um ângulo diferente, como se ele fosse feito de partes perfeitas de coisas diferentes que se unissem em uma única obra final. E você pode pensar que elas não se encaixavam bem, mas o fato é que era impossível dizer onde começava uma e acabava a outra, e de qualquer lado que se olhasse ele era perfeito de uma maneira, e diferente do conjunto geral. E primeiro caminhamos juntos e depois ele me levou, quando os postes de luz elétrica foram substituídos por lâmpadas a querosene, e quando as casas cada vez mais antigas foram ficando mais raras até que deixaram de existir e caminhamos na escuridão total. E logo meus pés pisavam em pavimentos de pedra, e depois em terra e por fim andamos descalços sob um céu estrelado, pontilhado por intermináveis constelações que eu não conhecia. 

Saímos de uma floresta escura, onde eu só conseguia seguir em frente confiando na sua mão, e subimos uma colina aberta de onde todo o firmamento de abria até tocar o horizonte. Por fim ele parou e me olhou. E mesmo ali, na sombra, eu via os seus olhos, calmos e antigos, como uma vela quase apagando em um quarto muito escuro. Ele então largou o livro e juro que não ouvi som algum de algo caindo no chão. E ele deixou os braços penderem ao lado do corpo e soltou minha mão. E eu fiz o mesmo e pude sentir a luz as estrelas frias no meu rosto. E então eu olhei para trás e pela primeira vez me senti um pouco surpreso com a situação toda. Pois uma parte de minha mente que ainda tentava racionalizar a coisa toda, achava que tínhamos andado até deixar a cidade para trás. mas a verdade é que a cidade não estava mais lá. E eu olhei de volta para o seu rosto e que os céus me traiam se aquele não foi um dos sorrisos mais impressionantes que eu já vi. Ele parecia desfrutar de um misto de diversão e pena da minha inocência, como um pai mostrando um avião ao filho maravilhado pela primeira vez.

Então eu notei pela primeira vez que a luz das estrelas estava mais forte e peguei sua mão outra vez quando ele me estendeu. E lembro de sentir o vento no rosto e de voar até ver a terra curva e escura rodopiando lá embaixo, e de ter medo de não conseguir mais encontrar o caminho de volta para o mesmo planeta, e de ver coisas que não me atrevo a escrever aqui. E durante este tempo todo eu senti nossos pés tocando a relva molhada pelo sereno.

Não tenho noção do tempo que ficamos lá, e me pareceram eras, ainda que a coisa toda pareça logicamente não ter durado muito mais que uma noite. 

E então, ainda que nesse ponto minhas lembranças estivessem meio borradas como quando acordamos de um sono profundo, lembro como, com um sorriso terno e triste, ele me disse.

“Preciso te levar de volta”

E hoje, pensando naquele olhar e naquele sorriso, não consigo me lembrar dele abrindo os lábios ou do som de sua voz. E para dizer a verdade não sei se em algum momento daquela noite conversamos usando os lábios.

Nos arrastamos então, cansados, de volta aos limítes do mundo de hoje, primeiro por antigas estradas poeirentas, depois por ruas pavimentadas com pedras e lembro  como sentei, por fim, esgotado, em um banco de pedra no cais do porto, quando o céu já se tingia de violeta, anunciando a chegada da manhã seguinte.

E não sei dizer como ele foi embora. E também não sei dizer quando aquele gato sentou ao meu lado. Só sei que por um longo tempo acariciei seu pelo e seu pescoço sem nem mesmo olhar para o lado, de olhos fechados, meio dormindo e meio desperto. 


E quando o primeiro raio de sol despontou no horizonte, eu me espreguicei e aquele esguio e ágil animal saltou do banco, e se espichou nas pontas das patas, se espreguiçando assim como eu. E me lembro de como ele era lindo, com um pelo que eu nunca tinha visto antes, preto como a noite quando visto de um lado e alvo como a luz da lua quando visto do outro, em cores mescladas e divididas por uma linha elegante que corria da cauda ao focinho. E ele andou alguns metros e virou para trás, antes de desaparecer caminhando, indo embora e me deixando ali, de mãos vazias, descalço. E no seu último olhar estavam olhos grandes e sonolentos, imutáveis há mil anos. 

Nenhum comentário: