Já era o quinto dia que subiam. Não era possível que se
pudesse subir ainda mais, mas os pés eram postos uns na frente dos outros e a
impressão era de que subiam, apesar dos contrafortes negros continuarem se
elevando a milhares de metros a frente. Os vales foram ficando mais estreitos,
os rios foram minguando até sumirem e a floresta densa dera lugar primeiro a
arbustos baixos e agora a uma vegetação rasteira e quase sem vida na qual não
podiam sequer agarrar-se. A primeira camada de nuvens ficou no vale lá embaixo
á três dias atrás e uma segunda camada mais negra e difusa mandava rajadas de
chuva congelada e flocos de neve contra os olhos de todos em intervalos cada
vez menores. O rumo não se desviava do oeste um grau sequer e cada dia mais
cedo o sol sumia atrás do paredão negro, a medida que eles iam avançando sob a
sombra gigantesca dos contrafortes. No final do sexto dia puderam ver pela
primeira vez uma falha no topo das montanhas. O sol entrava diretamente por ela
e nos últimos instantes era como se a pedra se tornasse etérea, dando origem a
um lugar além do que se poderia encontrar do outro lado. Aquilo apavorou a
todos, mas atraiu-os ainda mais para o destino desconhecido que os esperava. Na
metade da manhã do sétimo dia chegaram ao pé das montanhas e o que viram fez
com que cortassem o fôlego, apesar do pouco ar que dispunham respirando
normalmente. O fato é que a cada dia mais perto das montanhas os 4 brancos se
sentiam mais carregados. Não existia palavra para descrever a energia que os
preenchia, se é que era algo assim. Efeitos estranhos surgiam nos 4 irmãos
quanto mais eles se aproximavam do oeste. Não se podia olhá-los sem sentir uma
ardência nos olhos, apesar de que não se via brilho nenhum que causasse essa
sensação. Também pareciam ter estaturas maiores que o normal apesar de serem
apenas crianças. Jacob, o mais velho, tinha 19 anos mas parecia ter mais de
dois metros e meio, mas quando me aproximava e colocava a mão sobre sua cabeça,
o braço ficava quase na horizontal, levemente inclinado, evidenciando que a
altura dele não podia ser muito diferente da minha. Nas longas horas que
conversávamos, sua voz estalava, como carregada da matéria dos relâmpagos, e
ele se sentia mal pelo desconforto que isso me causava, apesar das minhas
tentativas, em vão, de esconder a dor que eu sentia. Quando no sétimo dia
chegamos aos pés da cadeia de montanhas, resolvemos acampar. Apesar da
disposição dos três ter sido aumentada após tocarem com as mãos nuas o bloco
maciço de basalto, eu me sentia esgotado e não podia mais continuar. Naquela noite, durante uma de nossas
conversas sobre o futuro e os sonhos de Jacob e seu irmão, meu olho direito se
tornou vermelho e meu ouvido começou a sangrar. Jacob se sentiu arrasado e
resolvemos cortar a conversa. No dia seguinte ele pisou pela primeira vez nos
degraus de pedra esculpidos nas montanhas e, se vocês pudessem vê-lo, com o
braço sobre o corrimão que era da altura da minha cabeça, diriam que ele tinha
facilmente três metros de altura. Eu me sentia mareado, estava completamente
surdo do ouvido direito e ao simples sussurro de bom dia do irmão mais novo,
foi como se uma agulha atravessasse minha cabeça. Martin não estava nos melhores
dias e vomitou muito, ainda cedo. O pequeno fazia seu trabalho maravilhosamente
cuidando do irmão mais novo e do segundo, e não sabia por que estava tão mal,
mas não desanimava. Seguimos o quarteto escada acima e era quase uma piada de mau gosto que 4 seres como
aqueles não pudessem chegar até lá sem
dois farrapos como nós. A subida toda
foi um verdadeiro inferno e nas duas vezes que eu cai de joelhos e Jacob
tentou me segurar pelo braço, o aperto frio de sua mão deixou marcas azuis que
doíam muito e que atrapalhavam mais ainda meu avanço. Dava pena ver a expressão
no rosto dele, mas era inevitável, e nas outras vezes ele apenas esperou que eu
me levantasse sozinho. O dia escurecia cada vez mais e o caminho subia até
alturas estonteantes.
Quando ergui
a cabeça e vi a estreita abertura na pedra pendurada a menos de 30 metros sobre
nós foi como se tivéssemos chegado ao fim, mas os últimos três lances de pedra
talhada ainda precisaram ser superados com muito sofrimento. Devia faltar ainda
uma hora para o por do sol, e nosso tempo chegava ao fim. Após vencidos aquelas
últimas duas ou três dúzias de titânicos degraus, onde a pele nua se congelava
e grudava ao simples toque, podemos enfim ver o que antes estava tão longe. Coloquei
um pé, cambaleando, no estreito corredor que estava a nossa frente. Era como se
uma porta de pedra devesse existir ali e o cenário ficava meio incompleto sem
ela. Talvez em outros tempos, ou outras realidades essa porta existisse. Eu acredito
que sim. Ao chegar no lugar plano que levava ao outro lado da montanha, talvez
por estar a tanto tempo subindo, coloquei todo meu peso em um pé e firmei ele
alto demais, sobre um degrau que não existia, de forma que me estatelei no
chão. Nenhum dos 4 podia me ajudar, de forma que fiquei ali por um tempo. É bom
quando se está preparado para o próprio fim, e ao invés de desconforto a pedra
fria era quase uma carícia ao meu rosto. Quando me senti mais descansado o
suficiente, me arrastei até onde os cinco estavam sentados. O sol seguia
baixando, a julgar pelo horário, pois não podíamos mais vê-lo já que além do portal estava apenas um mar
difuso de nuvens. Na verdade, nuvens não define aquilo. Tratavam-se mais de
vapores que rodopiavam e se dissipavam, voltando a surgir e se agrupar do nada.
Parecia uma coisa viva. Um amontoado de serpentes etéreas tão próximas que
criavam aquele efeito compacto de nevoeiro, bruxuleando no vazio, cada uma com
seu matiz próprio, mas infinitamente parecido ao do outro ser logo ao lado. O
silêncio era tanto que por um momento achei que meu outro ouvido também tivesse
sido destruído, mas o barulho do raspar das minhas roupas contra o chão me
provou o contrário. Ali ficamos, quase que em suspensão, esperando.
O que se seguiu foi fantástico. Não sei bem como começou,
mas lembro que de repente o vazio a nossa frente mudou imperceptivelmente sua
cor de cinza para um vermelho violáceo quase indistinguível. Não se sabia desde
quando, mas se sabia que estava lá. Se estivéssemos conversando ou dormindo,
aquele seria o momento em que, sem motivo aparente e sem explicação, mas com
uma certeza indiscutível, todas as atenções se voltariam para um ponto em
comum, além do visível a nossa frente. Então a cor se tingiu para um vermelho
sangue e então para tons de fogo e brasa. O sol se deitava em um deserto
interminável, a milhões e milhões de quilômetros dali, e podíamos vê-lo. Mesmo
através do nevoeiro intransponível, que agora de revolvia e espiralava ao redor
de si mesmo, com a cor de mil estrelas explodindo, podíamos ver, em nossas cabeças,
o sol, já a meio caminho de desaparecer. Mais que isso. Podíamos OUVIR o sol,
com o rugido de milhões de explosões de fogo a cada segundo, um rugido que
poderia engolir o planeta apenas com seu som. Não o percebíamos com os sentidos normais, que apenas absorviam o lusco-fusco mágico do nevoeiro, mas sim dentro de nossas cabeças. Percebíamos no centro do crânio, logo atrás da testa, a imagem mais vívida do que a visão, e o som mais estrondoso que os dos ouvidos. Todos estávamos de pé, e os
quatro gigantes loiros já brilhavam, formados agora de plasma, com as mesmas
cores da névoa. O sol irradiava ondas de gás e poeira, carregados de pura
energia, vibrando e pulsando além de um horizonte inatingível fisicamente e eu
senti, de um outro lugar muito distante além de mim, meu corpo sendo
estraçalhado por essas ondas. Já não éramos mais um só, e, quando enfim o
último arco de sol desapareceu detrás das areias inatingíveis, um estalo como o
de um arco voltaico desaparecendo no ar foi ouvido e, acima da linha do
horizonte, uns 5 graus, a estrela Dalva explodiu de uma só vez num estampido de
luz verde que cresceu e engoliu todo o espaço, o deserto e o nevoeiro num
intervalo de 2 segundos, chegando até nós e ao lado oeste das montanhas, onde
ela rebateu contra a parede maciça de pedras e desapareceu num ricochete que lançou estilhaços para o céu sumindo então no ar entre fagulhas verdes. E então não éramos mais quatro e dois, e sim seis
gigantes parados no extremo do paso de pedra, e dois montes de alguma
composição orgânica extremamente complexa. Como último efeito do cataclismo, o
nevoeiro se desfez por alguns instantes e a noroeste apareceu uma montanha, tão
alta que as geleiras a seus pés tinham mais de 48 mil pés de altura,
dependuradas sobre beiradas de pedra amarela. Sobre as bordas de gelo, centenas
de aves desconhecidas e gigantes esvoaçavam e mais acima, a meio caminho do
zênite, ficava o inalcançável cume granítico do Ngranek, aquela montanha que em
alguns universos contém a face esculpida dos deuses, e que desapareceu em
seguida em meio aos vapores, podendo se dizer que nem estava ali.
Assim foi o começo e o fim.
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