segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Sobre ônibus, odores e viagens no tempo.

Era um sábado á tarde e eu estava indo viajar. Já tinha comprado passagem e embarcado mas o ônibus ainda estava parado e com o motor desligado pois faltavam uns 20 minutos para a partida.

O dia estava bonito, céu azul com grandes nuvens que logo iam começar a chover, mas um pouco quente. Sentei no meu banco, provavelmente o mesmo desde uns 15 anos, porque o ônibus era dos mais velhos da empresa. Em menos de 1 minuto minhas costas já estavam colando no banco, a respiração levemente ofegante por causa do calor. Estava aquele ar surdo e meio estagnado, como o que fica dentro de um carro após a última pessoa sair e fechar a porta, lhe deixando sozinho lá dentro. Um silêncio calmo como o de o fundo de uma piscina, quando todos os sons cessam, os ouvidos apitam de leve e logo depois, o ruído normal recomeça, abafado e distante.

Fiquei ali por um tempo, aproveitando o silêncio e o calor, levemente desconfortável. então abri a janela e um sopro de ar fresco deslizou para o meu colo, pescoço, ouvidos e rosto. 

 Imediatamente o cheiro, o calor e o silêncio me remeteram ao passado, talvez uns 10 ou mais anos atrás (não muito, mas considerando que tenho 24 anos, um bom retrocesso), quando eu estava na mesma situação. Talvez a percepção do momento como idêntico ao passado (e digo idêntico porque parecia que se eu pegasse um espelho e me olhasse, veria refletido um menino de 12 ou 13 anos), se devesse  não somente aqueles 3 fatores, temperatura, sons e odores, mas sim a uma complexa reunião de outros detalhes que eu não estivesse percebendo, como explica Poe no começo do conto "A queda da casa de Usher", e que fossem pouco perceptíveis sozinhos mas tivessem um grande impacto sobre o panorama geral quando agrupados.

Sobre isso tudo eu já pensei e apenas revi as idéias naquele momento. O que surgiu de novo foi uma outra idéia. Supomos que um determinado cômodo de uma casa tenha permanecido imutável ao longo dos últimos 80 anos. Mesmo entrando nele você provavelmente não vai ter uma idéia de como ele era há tanto tempo atrás, pois a percepção de um ambiente não é apenas visual. Supondo que essas condições se repitam, existindo neste aposento dois dias de verão idênticos, com o cheiro de flores de glicínia entrando pela janela e trovões ecoando ao longe, mas separados por 60 anos. As paredes brancas de mármore e os painéis de madeira, assim como o marco da janela e o carpete felpudo permanecem os mesmos. Apenas no dia de hoje, quando as outras condições se repetem, o menino de 9 anos, deitado no carpete sem camisa, ouvindo os trovões ao longe, agora é um senhor de quase 70, deitado da mesma maneira e, se tiver os sentidos preservados, sentindo a mesma coisa, como se tivesse voltado ao passado. 

Até aí nada de novo. Apenas uma espécie de nostalgia elevada ao extremo ou uma experiência de deja vu. Foi o que aconteceu comigo quando das centenas de viagens de ônibus, duas idênticas aconteceram separadas por um lapso, talvez por casualidade ou por uma dobra no espaço-tempo. Isso poderia acontecer com qualquer pessoa que seja ligeiramente sensitiva. No meu caso são os cheiros, e confesso que não sei o peso disso para as outras pessoas. Se é igual ou se cada um revive momentos a partir de diferentes estímulos. Mas levando sempre em conta que sejam os estímulos iguais ou muito semelhantes, um jovem de 20 anos colocado no mesmo ambiente que o senhor, poderia REALMENTE experimentar aquele dia de 8 de agosto de 1912 ou 13, apesar de ter nascido somente muito depois. Essa experiência, muito diferente de visitar museus, pirâmides e monumentos, seria em sua essência muito mais impactante e representativa. Seria, a meu ver até agora, o mais próximo de uma viagem no tempo que qualquer pessoa poderia experimentar.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Na Montanha.

       Já era o quinto dia que subiam. Não era possível que se pudesse subir ainda mais, mas os pés eram postos uns na frente dos outros e a impressão era de que subiam, apesar dos contrafortes negros continuarem se elevando a milhares de metros a frente. Os vales foram ficando mais estreitos, os rios foram minguando até sumirem e a floresta densa dera lugar primeiro a arbustos baixos e agora a uma vegetação rasteira e quase sem vida na qual não podiam sequer agarrar-se. A primeira camada de nuvens ficou no vale lá embaixo á três dias atrás e uma segunda camada mais negra e difusa mandava rajadas de chuva congelada e flocos de neve contra os olhos de todos em intervalos cada vez menores. O rumo não se desviava do oeste um grau sequer e cada dia mais cedo o sol sumia atrás do paredão negro, a medida que eles iam avançando sob a sombra gigantesca dos contrafortes. No final do sexto dia puderam ver pela primeira vez uma falha no topo das montanhas. O sol entrava diretamente por ela e nos últimos instantes era como se a pedra se tornasse etérea, dando origem a um lugar além do que se poderia encontrar do outro lado. Aquilo apavorou a todos, mas atraiu-os ainda mais para o destino desconhecido que os esperava. Na metade da manhã do sétimo dia chegaram ao pé das montanhas e o que viram fez com que cortassem o fôlego, apesar do pouco ar que dispunham respirando normalmente. O fato é que a cada dia mais perto das montanhas os 4 brancos se sentiam mais carregados. Não existia palavra para descrever a energia que os preenchia, se é que era algo assim. Efeitos estranhos surgiam nos 4 irmãos quanto mais eles se aproximavam do oeste. Não se podia olhá-los sem sentir uma ardência nos olhos, apesar de que não se via brilho nenhum que causasse essa sensação. Também pareciam ter estaturas maiores que o normal apesar de serem apenas crianças. Jacob, o mais velho, tinha 19 anos mas parecia ter mais de dois metros e meio, mas quando me aproximava e colocava a mão sobre sua cabeça, o braço ficava quase na horizontal, levemente inclinado, evidenciando que a altura dele não podia ser muito diferente da minha. Nas longas horas que conversávamos, sua voz estalava, como carregada da matéria dos relâmpagos, e ele se sentia mal pelo desconforto que isso me causava, apesar das minhas tentativas, em vão, de esconder a dor que eu sentia. Quando no sétimo dia chegamos aos pés da cadeia de montanhas, resolvemos acampar. Apesar da disposição dos três ter sido aumentada após tocarem com as mãos nuas o bloco maciço de basalto, eu me sentia esgotado e não podia mais continuar.  Naquela noite, durante uma de nossas conversas sobre o futuro e os sonhos de Jacob e seu irmão, meu olho direito se tornou vermelho e meu ouvido começou a sangrar. Jacob se sentiu arrasado e resolvemos cortar a conversa. No dia seguinte ele pisou pela primeira vez nos degraus de pedra esculpidos nas montanhas e, se vocês pudessem vê-lo, com o braço sobre o corrimão que era da altura da minha cabeça, diriam que ele tinha facilmente três metros de altura. Eu me sentia mareado, estava completamente surdo do ouvido direito e ao simples sussurro de bom dia do irmão mais novo, foi como se uma agulha atravessasse minha cabeça. Martin não estava nos melhores dias e vomitou muito, ainda cedo. O pequeno fazia seu trabalho maravilhosamente cuidando do irmão mais novo e do segundo, e não sabia por que estava tão mal, mas não desanimava. Seguimos o quarteto escada acima e era  quase uma piada de mau gosto que 4 seres como aqueles não pudessem chegar  até lá sem dois farrapos como nós. A subida toda  foi um verdadeiro inferno e nas duas vezes que eu cai de joelhos e Jacob tentou me segurar pelo braço, o aperto frio de sua mão deixou marcas azuis que doíam muito e que atrapalhavam mais ainda meu avanço. Dava pena ver a expressão no rosto dele, mas era inevitável, e nas outras vezes ele apenas esperou que eu me levantasse sozinho. O dia escurecia cada vez mais e o caminho subia até alturas estonteantes.
            Quando ergui a cabeça e vi a estreita abertura na pedra pendurada a menos de 30 metros sobre nós foi como se tivéssemos chegado ao fim, mas os últimos três lances de pedra talhada ainda precisaram ser superados com muito sofrimento. Devia faltar ainda uma hora para o por do sol, e nosso tempo chegava ao fim. Após vencidos aquelas últimas duas ou três dúzias de titânicos degraus, onde a pele nua se congelava e grudava ao simples toque, podemos enfim ver o que antes estava tão longe. Coloquei um pé, cambaleando, no estreito corredor que estava a nossa frente. Era como se uma porta de pedra devesse existir ali e o cenário ficava meio incompleto sem ela. Talvez em outros tempos, ou outras realidades essa porta existisse. Eu acredito que sim. Ao chegar no lugar plano que levava ao outro lado da montanha, talvez por estar a tanto tempo subindo, coloquei todo meu peso em um pé e firmei ele alto demais, sobre um degrau que não existia, de forma que me estatelei no chão. Nenhum dos 4 podia me ajudar, de forma que fiquei ali por um tempo. É bom quando se está preparado para o próprio fim, e ao invés de desconforto a pedra fria era quase uma carícia ao meu rosto. Quando me senti mais descansado o suficiente, me arrastei até onde os cinco estavam sentados. O sol seguia baixando, a julgar pelo horário, pois não podíamos mais vê-lo  já que além do portal estava apenas um mar difuso de nuvens. Na verdade, nuvens não define aquilo. Tratavam-se mais de vapores que rodopiavam e se dissipavam, voltando a surgir e se agrupar do nada. Parecia uma coisa viva. Um amontoado de serpentes etéreas tão próximas que criavam aquele efeito compacto de nevoeiro, bruxuleando no vazio, cada uma com seu matiz próprio, mas infinitamente parecido ao do outro ser logo ao lado. O silêncio era tanto que por um momento achei que meu outro ouvido também tivesse sido destruído, mas o barulho do raspar das minhas roupas contra o chão me provou o contrário. Ali ficamos, quase que em suspensão, esperando.
             O que se seguiu foi fantástico. Não sei bem como começou, mas lembro que de repente o vazio a nossa frente mudou imperceptivelmente sua cor de cinza para um vermelho violáceo quase indistinguível. Não se sabia desde quando, mas se sabia que estava lá. Se estivéssemos conversando ou dormindo, aquele seria o momento em que, sem motivo aparente e sem explicação, mas com uma certeza indiscutível, todas as atenções se voltariam para um ponto em comum, além do visível a nossa frente. Então a cor se tingiu para um vermelho sangue e então para tons de fogo e brasa. O sol se deitava em um deserto interminável, a milhões e milhões de quilômetros dali, e podíamos vê-lo. Mesmo através do nevoeiro intransponível, que agora de revolvia e espiralava ao redor de si mesmo, com a cor de mil estrelas explodindo, podíamos ver, em nossas cabeças, o sol, já a meio caminho de desaparecer. Mais que isso. Podíamos OUVIR o sol, com o rugido de milhões de explosões de fogo a cada segundo, um rugido que poderia engolir o planeta apenas com seu som. Não o percebíamos com os sentidos normais, que apenas absorviam o lusco-fusco mágico do nevoeiro, mas sim dentro de nossas cabeças. Percebíamos no centro do crânio, logo atrás da testa, a imagem mais vívida do que a visão, e o som mais estrondoso que os dos ouvidos. Todos estávamos de pé, e os quatro gigantes loiros já brilhavam, formados agora de plasma, com as mesmas cores da névoa. O sol irradiava ondas de gás e poeira, carregados de pura energia, vibrando e pulsando além de um horizonte inatingível fisicamente e eu senti, de um outro lugar muito distante além de mim, meu corpo sendo estraçalhado por essas ondas. Já não éramos mais um só, e, quando enfim o último arco de sol desapareceu detrás das areias inatingíveis, um estalo como o de um arco voltaico desaparecendo no ar foi ouvido e, acima da linha do horizonte, uns 5 graus, a estrela Dalva explodiu de uma só vez num estampido de luz verde que cresceu e engoliu todo o espaço, o deserto e o nevoeiro num intervalo de 2 segundos, chegando até nós e ao lado oeste das montanhas, onde ela rebateu contra a parede maciça de pedras e desapareceu num ricochete que lançou estilhaços para o céu sumindo então no ar entre fagulhas verdes. E então não éramos mais quatro e dois, e sim seis gigantes parados no extremo do paso de pedra, e dois montes de alguma composição orgânica extremamente complexa. Como último efeito do cataclismo, o nevoeiro se desfez por alguns instantes e a noroeste apareceu uma montanha, tão alta que as geleiras a seus pés tinham mais de 48 mil pés de altura, dependuradas sobre beiradas de pedra amarela. Sobre as bordas de gelo, centenas de aves desconhecidas e gigantes esvoaçavam e mais acima, a meio caminho do zênite, ficava o inalcançável cume granítico do Ngranek, aquela montanha que em alguns universos contém a face esculpida dos deuses, e que desapareceu em seguida em meio aos vapores, podendo se dizer que nem estava ali.


Assim foi o começo e o fim.