quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Para Pensar

No vale de Nis, a maldita lua minguante brilha palidamente, rasgando um caminho para seu clarão com frágeis chifres através da folhagem letal das grandes árvores upas. E nas profundezas do vale, onde a luz não alcança, movem-se formas que não foram feitas para serem vistas. Alinhada está a verdura em cada encosta, onde vinhas malignas e trepadeiras rastejam em meio as pedras de palácios em ruínas, enroscando-se em colunas partidas e estranhos monólitos, e estendendo-se por pisos de mármore assentados por mãos ignotas. E nas árvores que crescem gigantescas em pátios arruinados, saltitam macaquinhos, enquanto venenosas serpentes e inomináveis criaturas escamadas se contorcem para dentro e para fora de profundas criptas subterrâneas.


Enormes são as pedras que dormem cobertas por lençóis de musgo úmido, e poderosas são as paredes de onde elas tombaram. Pois seus construtores as ergueram para durar, e na verdade elas ainda servem nobremente; pois debaixo delas faz sua morada o sapo cinzento.


E no ponto mais profundo do vale corre o rio Mhen, cujas águas são lodosas e repletas de ervas daninhas. De ocultas fontes ele nasce, e para subterrâneas grutas flui para que o Demônio do Vale não saiba porque suas águas são rubras, nem para onde fluem.


O Gênio que habita os raios lunares falou para o Demônio do Vale: “Sou velho e esqueço muito. Conte-me os feitos, e o aspecto, e o nome dos que construíram essas coisas de Pedra.” E o Demônio replicou: “Sou a Memória, e sou versada no conhecimento do passado, mas também sou muito velha. Essas criaturas eram como as águas do rio Mhen, para não serem compreendidas. De seus feitos não me recordo, pois foram passageiros. Seu aspecto, lembro-me vagamente, era parecido com o dos macaquinhos nas árvores. De seu nome lembro-me claramente, pois rimava com o do rio. Essas criaturas do passado chamavam-se “Homem”.


Então o Gênio deslizou de volta para a pálida lua minguante, e o Demônio olhou intensamente para um macaquinho numa árvore que crescia num pátio em ruínas.

Memória - Howard Phillips Lovecraft

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Porque Temos Segredos

"As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São as coisas das quais você se envergonha, pois as palavras as diminuem – as palavras reduzem as coisas que pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando são reveladas. Mas é mais que isso, não? As coisas mais importantes estão muito perto de onde seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações que lhe são muito difíceis e as pessoas o olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem por que eram tão importantes que você quase chorou enquanto estava falando. Isso é pior, eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas de alguém que compreenda.

Eu tinha doze anos, quase treze, quando vi pela primeira vez um ser humano morto. Foi em 1960, há muito tempo atrás... embora às vezes não me pareça tanto tempo. Principalmente nas noites que acordo sonhando com a chuva de granizo caindo em seus olhos abertos.


"Stephen King, em "Quatro Estações - Outono Da Inocência"

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Luana

Ontem a noite eu tentava dormir

Quando lembrei das chamas frias que calcinaram meu passado.

E que vinham de nenhum outro lugar senão os seus olhos.

Olhos fundos, frios, e prenúncio das loucuras que você viria a trazer ao meu lado. Matando o silêncio da noite com sua voz, que engana a todos que pensam que ela é humana.

Humanamente impossíveis são os teus afagos. Sentidos por magos esquecidos, por alquimistas da ciência proibida e pelos bravos soldados derrotados, que esperam a morte derradeira em meio ao silêncio do campo de batalha, silêncio apenas quebrado pelo riso zombeteiro das hienas e pelo grito aziago de abutres.

Sonhos antigos. Um mundo irreal. Sons como o vento que sopra das catacumbas, que sai ululando daquelas portas de mármore entalhadas por mãos mortas a eras e que quando cruzadas levam aos abismos insondáveis sob a areia, aonde ainda estão em pé, cidades pré humanas talhadas na própria rocha e esquecidas desde tempos imemoriais.

Magia negra feita nas madrugadas, ritos cabalísticos á sombra de salgueiros seculares, necromancia em meio a criptas e ruínas druídicas de pedras, práticas horrendas de licantropia iluminadas pela luz fria e azulada da lua.

Você sempre esteve comigo quando me aventurava nas inúmeras saídas e fugas da realidade destroçante do dia-a-dia.

Você nunca se afastava mas hoje parece ter partido sem motivo.

Você que a tantos causa repulsa, e cuja beleza jovial é sufocada pela idade incomensurável presente em seus próprios olhos.

Você, fria e misteriosa, que carrega a malignidade e a peste nas mãos, a tempestade nos pés, e a morte solitária no coração. Que traz nos cabelos o negrume e a sombra dos abismos mais profundos, e na pele, a alvura do gelo eterno e intocado sobre as montanhas da loucura.

Tu, que conheceu Sarnath quando ela ainda era jovem e próspera, que chorou quando o pequeno garoto ergueu as mãos para o céu e invocou em sua sede de vingança, todos os gatos de Ulthar. Que conheceu e dançou ao lado de Iranon, o jovem príncipe, em sua busca pela sua terra de sonhos, e que já esteve ao lado até mesmo do temido Nyarlathothep, a alma negra do antigo Egito.

Tu, minha amada, de beleza e mistérios maiores que os da própria Nathicana, e a quem me entrego morto, apenas para que me feche os olhos.

Mas os relances de memória não param. Cada vez me chegam mais coisas á mente. E então como um tiro rente aos tímpanos chega um tom que eu conheço a décadas mas que não ousava reproduzir nem mesmo em pensamentos.

Agora sim quase tudo está completo.

Lembro-me agora da estrela polar e dos cantos em códigos, indecifráveis pelos povos comuns, que dela provinham. Cantos esses que você decirava em ondas e irrealidade e tranformava em notas desconhecidas pelos homens mais sábios da música. Tranformava, traduzia, projetava e enviava em uma música inominável, nauseante e que me levou por várias vezes, á diferentes épocas e aos extremos do prazer e da loucura.

Cante novamente, queiram os grandes antigos.

Cante para mim e para o mundo. Sussurre sua música em meu ouvido e segure em meus cabelos e em meu braço para que eu não possa escapar quando a realidade ameaçar me afogar nos mares do infinito e do além, do cósmico e do incompreensível.

Cante e seremos transportados para aquele lugar onde reinam os que já se foram.
Aquele lugar que os mais profundamente viciados no ópio apenas enxergam de relance em meio a uma cortina de almas e fantasmas, não ousando olhar mais de perto.

Cante no meu ouvido....

baixinho e melodioso.....

e serei seu....eternamente seu.