Saiu de um banho normal. Água escaldante seguida de água gelada. Escaldante até sentir o cansaço e o corpo mole pelo calor. Gelada até conseguir se acostumar e encher os pulmões de ar, soltando depois devagar por umas 3 ou 4 vezes. A água gelada faz a respiração ficar convulsiva e em geral demora um bom tempo até se conseguir respirar com tranquilidade durante um banho gelado. Saiu do box apertado. O cheiro no banheiro era de sal, mofo e umidade. Contrastava com o cheiro de limpeza do seu corpo e seus cabelos.
O lugar era apertado e era quase impossível se secar sem ver pelo menos uma parte dele refletida no espelho. Achava isso desconfortável, mesmo que só houvesse perigo durante algum contato visual. De qualquer forma, era como debruçar-se sobre a sacada de um prédio e sentir uma parte da mente querendo pular. A luz estava apagada e pela janela entrava alguma luminosidade da rua. Era escuro de uma maneira que não se poderia ler, mas ainda se enxergava tudo com certa clareza. De repente, sem motivo, endireitou o corpo e se olhou no espelho. Se encarou fundo, para constatar aliviado que uma grande mancha embaçada tapava o seu rosto. Mesmo assim era só inclinar a cabeça uns poucos centímetros para o lado para que a imagem saísse de trás da mancha e ficasse nítida. Perguntou se havia algum problema.
"Não. Hoje não." - responderam.
Realmente ele não sentia medo. Inclinou a cabeça e se encarou fundo no espelho. O rosto era um pouco difuso, e não havia nada ali além de poucas sombras. Esperou para ver se alguém aparecia e estava se perguntando onde estava aquele ser negro, quando ele respondeu, não do espelho, mas sim de trás da sua cabeça. Foi mais um pensamento transmitido como idéias do que uma voz. Na verdade, não havia naquilo nenhuma voz, a não ser ideias:
- Cubra a cabeça com a toalha. Como um capuz.
Ele então cobriu a cabeça com a toalha, pensando que ficaria parecido com um monge ou algo assim, sem entender exatamente o motivo de fazer aquilo, e imediatamente o rosto desapareceu nas sombras....E então, lá estava ele. Dentro do capuz, bruxuleante e antigo:
- Estava muito claro. - Falou com um tipo de sorriso envergonhado - Eu não conseguia sair.
Ele se encarou um pouco no espelho, admirando com carinho a sombra pura e profunda. Então tirou o capuz e seu rosto voltou a ser normal. Sem bem saber porque, terminou de se secar e saiu do banheiro. Foi até o quarto, se vestiu e desceu para a sala. Ficou pensando no encontro. E só então se deu conta de que não havia conversado nada com ele. Depois de muito tempo, se encontraram e não haviam trocado nenhuma palavra. Resolveu voltar ao banheiro. Enquanto subia as escadas, as vozes na cabeça diziam...
"Não, não, não...o que você está fazendo? Não volte lá! não volte lá."
Mas a curiosidade era maior. O que se seguiu foi rápido e quase impensado. Entrou no quarto e no banheiro. Se olhou no espelho e notou a claridade. Então se virou e fechou a porta atrás dele. A luminosidade era a mesma de antes, mas com os olhos desacostumados a escuridão agora era bem maior. Pegou uma outra toalha, jogou sobre a cabeça e se olhou no espelho. Não podia ver os seus olhos (e provavelmente isso foi uma sorte tremenda), e enquanto se dava conta de que Ele não estava mais lá, o reflexo respirou dentro do espelho. Aquela coisa que não era o Ser escuro, respirou fundo e abaixou um pouco a cabeça. O reflexo não era mais ele, não era mais dele. Depois de sair do banheiro e ir para sala, alguma coisa tinha mudado e agora não era mais um ser profundo e inteligente que estava lá. O banheiro então se encheu de uma sensação horrível e ele sentiu medo. Primeiro medo e depois pavor. Aquela coisa maligna ficou meio dobrada lá dentro, respirando de uma maneira ofegante e dobrando a cabeça, e ele sentiu como ela se divertia com o pavor dele. Sentiu que ela não podia sair do espelho (e nem queria), mas a simples presença dela lá era horrível demais. Então levou a mão para trás, para abrir a porta e por um instante, sentiu que a porta estava trancada. Sentiu que ela não ia abrir e quando ele se virasse para forçar a maçaneta, aquilo ia sair lá de dentro e agarrá-lo pelos ombros. E então a porta abriu e ele correu para fora. Tirou a toalha de cima do rosto e jogou de volta no banheiro.
Ainda teve tempo de ver, quando o banheiro ficou claro, o próprio reflexo assustado correndo do banheiro.
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
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