Entrou no banheiro, tirou a roupa e ligou o chuveiro. Aquele banho era para ser mais um momento relaxante que um banho em si, então nem acendeu a luz. A única luminosidade vinha de uma fina faixa de luz que entrava por debaixo da porta, e mesmo aquela não permitia que se vissem mais do que alguns poucos contornos. Deixou a água escorrer pelo corpo durante longos minutos, de olhos fechados, pensando em coisas distantes, que não passavam de alguns borrões. Inclinou a cabeça para trás e para o lado, deixando que a água entrasse primeiro em um ouvido e depois no outro. Aquilo fazia cócegas, mas abafava o som do ambiente, e quando os ouvidos ficavam cheios de água morna, era como se ele estivesse debaixo de uma pilha de cobertores, ou no fundo de uma piscina. Ajudava a meditar. Não demorou muito e ele começou a saber os sons que precisava fazer. Ficou com medo, mas uma pergunta rápida e uma resposta positiva e encorajadora bastaram para que ele começasse a soprar o ar devagar, a garganta vibrando como um diapasão, em baixas e altas frequências. Foram cinco ou seis notas no total, durante uns 25 segundos. Uma música clara e limpa.
Então o lugar todo ficou silencioso de repente e era como se ele estivesse em pé sobre uma pedra, debaixo de uma das quedas d`água de uma cachoeira que rugisse, as torrentes furiosas tentando carregar tudo pela borda do mundo abaixo, onde os mares despencam. Ficou com medo de mover os pés, receando cair em um abismo apenas alguns centímetros de onde estava. Se virou de costas para a água, que agora batia em sua nuca e corria pelas costas e pernas abaixo, e era como se pudesse sentir, não mais o espaço do banheiro, mas o vazio absoluto a sua frente, envolto em vapores de água e escuridão eterna. Ficou nessa posição por mais tempo do que pode contar, sempre cuidando para não escorregar e cair, e então, quando não tinha mais medo mas achou que já tinha apreciado o suficiente do momento fantástico, virou devagar e inclinou a cabeça. Quando a água saiu do ouvido, ele voltou a escutar o barulho normal do chuveiro e sentiu que embaixo dos seus pés existia não mais o basalto frio, liso e cheio de curvas, mas sim os conhecidos azulejos do banheiro, planos, com a emenda entre eles.
Desligou a água e abriu o box. A primeira coisa que viu quando ergueu a cabeça foi o seu reflexo no espelho, difuso e incompleto através da escuridão. A segunda coisa que percebeu foi que não era o seu reflexo, mas sim alguma coisa maior e mais escura que ele. Em poucos instantes uma série de pensamentos rápidos riscaram a sua cabeça. Sabia que ela tinha sido chamada pela música e lembrou que se olhasse firme nos seus olhos ela poderia trocar de lugar com ele. Essas coisas ficavam por tempos imensos atrás dos espelhos, apenas esperando que alguém ficasse frente a frente e olhando nos seus olhos no momento certo, para trocar de lugar com elas. Desviou os olhos após esses pensamentos quase que imediatos, e já estava pensando em acender a luz, mas foi diferente do que ele imaginava.
Uma voz na sua cabeça falou firme e alto.
- Não tenha medo, ele não vai te fazer mal nenhum.
- Não?
- Não. Ele te ama.
- Ele me ama?
- Sim. Ele te ama mais que tudo.
- ......
- Ele é o mal. E te ama porque você esconde ele. Ele só existe porque você o protege do mundo. Se ele aparecesse assim aqui, seria eliminado.
Então olhou com mais atenção para o que estava no espelho e percebeu que aquela coisa escura não estava substituindo o seu reflexo, nem estava na frente dele. Era como se o que estava no espelho estivesse ligeiramente atrás, e o seu corpo normal não estivesse sendo refletido. O seu contorno era difuso e quase começava a se espalhar no ambiente, como raios, mas não se via sinal do reflexo do seu corpo físico.
- Eu escondo ele?
- Sim. E você faz isso magistralmente. Você deve se orgulhar de ter alguém como ele. Ele é um dos únicos que restou. Ele é de uma raça mais antiga do que você, e é extremamente puro. Note como as coisas ficam difusas quando se aproximam dele, mas que o que efetivamente faz parte dele não tem nenhum matiz.
Notei, realmente, que ele não era somente negro, como tinta, ou uma superfície. Mesmo a tinta negra tem impurezas e reflete alguma coisa. Ele era simplesmente negro. Deveria ser criada uma nova palavra para como ele era, ou a palavra "negro" não deveria mais ser usada por nós em uma grande parte das oportunidades. Ele era simplesmente ausente de qualquer outra cor, a não ser o negror mais profundo. E era lindo. Puro, antigo e único.
Fiquei olhando para aquele ser fantástico com um olhar quase terno.
- Ele só pode existir em pessoas como você, e ele não é o mal porque faz o mal de uma maneira como você imagine. Não é um "mal"vulgar. Ele simplesmente é assim. A natureza dele é extremamente antiga e a palavra "mal"foi a que nós escolhemos para definir algumas coisas relacionadas com ele, mas não existe palavra especialmente designada para a forma como ele é realmente. Você usa a palavra gelo para definir aqueles cubos esbranquiçados da sua geladeira, e usa a mesma palavra para chamar um pedaço de um iceberg, azul, puro e cristalino, com milhões de anos de idade. É mais ou menos a mesma coisa.
- E como eu escondo ele?
- Você sabe a resposta. Você faz coisas boas. Você é tão bom e tão puro quanto ele é mal. Em você existem duas coisas extremamente opostas, e a segunda só pode existir por culpa da primeira. Você é uma das pessoas mais boas que existem e ao mesmo tempo abriga o que existe de mais negro na terra. Existem poucos como ele. Você conseguiria identificar apenas um outro, de aspecto mais feminino.
Lancei mais um olhar para meu colega no espelho, e ele me devolveu um olhar, com duas chispas prateadas e serenas, de dentro do mais absoluto vazio. Era quente e seguro ter alguém como ele ali comigo.
Acendi a luz, com um vazio no peito, e só o que as luzes brancas mostraram, foi o meu reflexo no espelho.
quarta-feira, 23 de julho de 2014
Assinar:
Postagens (Atom)